Entre o moralismo e a regra do jogo

Vivemos um momento importante de consolidação da democracia. Em 2013, completamos 25 anos de nossa Constituição e em 2014, iremos pela sétima vez às urnas eleger Presidente da República. Trata-se do mais longo período de democracia sem qualquer tipo de ruptura, se considerarmos que antes da Revolução de 1930 tínhamos um regime a que chamar de democracia é ser deveras generoso.

De tudo isso, evidente perceber a juventude de nossas instituições democráticas e o cuidado que devemos ter para qualquer julgamento definitivo acerca de nossas mazelas. É sempre muito injusto julgamentos como o de que “esse país não é serio” e similares, assim como as comparações com democracias que já perduram ao longo de séculos (e que, diga-se, também não são perfeitas).

É importante entender que democracia não se decreta, se constrói na vivência. Mais: a democracia é um conjunto de pactos que precisam ser respeitados ao longo do tempo, independente de quem está no Governo, de modo que se consolide uma cultura democrática, com regras do jogo que com as quais todos estejam comprometidos.

É nesse contexto que as nossas grandes mazelas serão combatidas. Nossa tradição de um Estado controlado para o benefício de interesses privados, de um Estado que age com violência contra seus cidadãos, de uma prática política onde a corrupção tem presença constante ao longo de séculos de baixo (ou nenhum) controle público e mínima cultura democrática.

Tudo isso para dizer porque são preocupantes os movimentos que procuram estabelecer mecanismos “moralizantes” ao arrepio da lei e da Constituição de 1988. Nesse breve ensaio, trato de exemplos dessa preocupação, pois, em nome do moralismo, relativizam direitos individuais históricos e fundamentais numa democracia: a Lei da “Ficha Limpa”, a cassação de mandatos em razão de infidelidade partidária e a condição de inelegibilidade de candidatos com prestação de contas rejeitadas em eleições anteriores.

A cassação de parlamentares por infidelidade partidária foi instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por meio da Resolução 22.610, de 1997. Por meio de tal Resolução, o mandatário público que optar por mudar de partido perderá o mandato, exceto se comprovar “justa causa” para a sua decisão. As possíveis razões de justa causa previstas pelo TSE são: “I) incorporação ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; IV) grave discriminação pessoal”.

Ocorre que sempre que o partido pelo qual o mandatário foi eleito vai ao Judiciário Eleitoral requerer a perda do mandato, o obtém. Os TRE adotaram um entendimento bastante rígido, onde absolutamente nada é capaz de provar a tal “grave discriminação pessoal”. Qualquer ato da maioria e da burocracia partidária é aceito como legítimo por parte da Justiça Eleitoral. A quem é minoria, só cabe se aceitar as decisões, sob pena de incorrer em “infidelidade partidária”.

Evidente que a situação anteriormente existente na política brasileira, com a troca de mandatos como regra estava errada. No entanto, a forma como a Justiça Eleitoral está tratando do tema tem consolidado dezenas de casos profundamente injustos.

Nem mesmo a prova de que a maioria partidária impediria um vereador de concorrer à reeleição é capaz de configurar “grave discriminação pessoal”. As constantes dissoluções de diretórios municipais substituídas por comissões provisórias, com o fito de excluir determinado parlamentar do controle partidário por uma decisão despótica de um presidente de diretório estadual, tudo isso é considerado assunto interno do Partido. Assim, a constante negociata existente em torno de troca de partido por parlamentares foi substituída por um poder total de mando das maiorias sobre as minorias partidárias.

O que se vê, portanto, é que a materialização forçada do princípio da fidelidade partidária está gerando uma distorção, onde nenhuma prova é suficiente em defesa do mandatário que decide deixar o partido pelo qual se elegeu. Mais ainda: é legítimo que se casse mandato eletivo amparado em Resolução do TSE, sem que lei aprovada pelo parlamento o preveja?

Em 1º de março de 2012, o mesmo TSE decidiu, que os candidatos cujas prestações de contas de eleições anteriores tenham sido rejeitadas passam a ser inelegíveis. Mais uma vez, o moralismo se coloca acima da Lei.

O §7º no art. 11 da lei 9.504 é claro ao definir a “a apresentação de contas de campanha eleitoral” como condição para a obtenção da certidão de quitação eleitoral, um dos documentos necessários para um candidato inscrever sua candidatura.

Assim, o sujeito que concorreu em 2008 ou 2010 tinha uma lei regulando as eleições que lhe impunha uma obrigação clara: “apresentar as contas de campanha”. Em caso de eleição, aí sim era requisito para a diplomação a aprovação das contas. Agora, o TSE (contrariando uma lei vigente) decide que são inelegíveis aqueles que tiveram suas prestações de contas de eleições anteriores rejeitadas. Assim, de forma retroativa: quando concorreram, a eventual rejeição das contas não tinha qualquer penalidade. Agora, às vésperas de uma eleição, o candidato poderá ser penalizado por uma irregularidade que à época não tinha qualquer consequência e ainda sem previsão por lei. Evidente, portanto, o arbítrio.

Mas há espaço para que se demonstre essa situação com clareza? Não: na imprensa, o que aparece é a notícia já misturando os candidatos nessa situação com aqueles inelegíveis por conta da chamada “Ficha Suja”. Outro dia um nobre radialista de Porto Alegre, após advertido que estava misturando os assuntos, ao invés de se corrigir, reapresentou pouco depois a notícia já chamando de “os candidatos Conta Suja”. Logo, se percebe que o clamor moralista tomou conta dos meios de comunicação, que pregam a intolerância com qualquer aspirante a cargo eletivo que tenha pendência penal ou administrativa, como se isso fosse sinônimo de que esse sujeito, eleito, será um corrupto.

Tais decisões vão no mesmo sentido do “carro-chefe” de todo o moralismo, a chamada “Lei da Ficha Limpa”. Inicialmente, a proposta era de tornar inelegível qualquer cidadão que tivesse mera denúncia na Justiça Penal. Após debate pelo Congresso (sempre pressionado pela aprovação rápida, sem delongas), a lei terminou aprovada tornando inelegíveis aqueles com condenação “transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado”, como se uma decisão de órgão colegiado fosse garantia da sapiência.

Assim, ficou rompido o caro princípio da presunção de inocência (de que até o trânsito em julgado de decisão penal, presume-se inocente o réu), um dos dispositivos fundamentais da democracia e da liberdade pessoal.

Aplicar pena de forma antecipada (quando uma condenação poderá ainda ser revertida por instância superior) é uma brutal violência contra o direito de um indivíduo. E se essa “condenação por órgão colegiado” for reformada, depois? Como fica o sujeito contra o qual se adotou uma “presunção de culpabilidade” em razão de uma decisão equivocada e que, por conta disso, foi impedido de se apresentar como candidato?

Também a aplicação da “Lei Ficha Limpa” tem representado aplicação retroativa da lei de firma negativa ao indivíduo. O caso mais gritante é daqueles mandatários que, acuados por processo de cassação, renunciaram: a época, não havia penalidade prevista para tal ato; agora, de uma hora para a outra e por lei posterior, estão inelegíveis.

São situações que merecem a nossa reflexão: em nome de maior rigor no combate à corrupção, é correto violentar direitos individuais fundantes do regime democrático? É positivo esse clima de histeria, em que situações distintas são todas postas na vala comum, como se correto presumir culpa? Não estamos criando rótulos de caráter policialesco que despolitizam o debate político? É com a primazia da forma sobre o conteúdo que realmente diminuiremos a corrupção no país?

São provocações necessárias, num debate que parece muito asfixiado, onde a simples crítica a esses novos mecanismos faz com quem você seja já rotulado como alguém leniente com a corrupção. E mais: hoje a supressão de direitos e garantias individuais vem em nome do combate à corrupção. Logo, será para combater a criminalidade comum. Mais dia, menos dia, a polícia pode pedalar na madrugada a porta de qualquer um em nome do “interesse da sociedade”. Aliás, já o faz. Só que isso ainda é ilegal. Talvez logo mais, graças a algum “clamor” forçado, vire prática justificável em nome do interesse social. Vale o risco?

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